𝘍𝘰𝘵𝘰: 𝘈𝘳𝘲𝘶𝘪𝘷𝘰 𝘱𝘦𝘴𝘴𝘰𝘢𝘭 (2022).

O último café de agosto.

Vinicius de Souza
6 min readMay 3, 2024

--

Ao fundo de um quarto em meia luz, soava uma melodia digital abafada em meio a lençóis, colchas e travesseiros. Inúmeras vezes, era assim que o dia iniciava. Ainda com os olhos semicerrados e com o cabelo bagunçado, procurava avidamente o aparelho celular, responsável por encerrar o seu torpor amanhecente.

– Será um novo dia!

Com esse pensamento no automático, acreditava evocar todos os elementos místicos, capazes de reorganizar a sua rotina. Fitava seu semblante ensandecido, naquele espelho que costumava mostrar uma face bela, jovial e sem maiores preocupações. Corria, passava um café às pressas, tentando uma maneira de abreviar suas pausas para alimentação. Com isso, sentia a primeira desmotivação do dia, ao degustar em goles frenéticos o café fraco, amargo e envelhecido. Em quinze minutos estava vestido, nos outros vinte ficava parado olhando para o nada. Levava nove minutos até o ponto de ônibus, mas todos os dias pensava em comprar um automóvel que o levasse aos lugares com maior conforto e individualidade. Precisava trabalhar, não só ele como os sete bilhões de pessoas ao redor do mundo. A tarefa não era fácil, passar os dias matutando quanto tempo ainda teria que se expor a essa jornada sem perspectiva. Contudo, todos sabemos que há particularidades, há manobras, há rios de dinheiro que mantém outros milhões de sujeitos com sorte em total plenitude. Pensava demais, logo, esmoreceu frente à todas as intempestividades viscerais, presentes em sua cabeça pensante. Não havia o mínimo incentivo, apenas dissabores laborais.

Uma passada rápida pelas redes sociais sem qualquer atenção, o ônibus chega ao terminal, sobe lentamente, procura um lugar e encontra todas as janelas disponíveis — pequenos prazeres. No envelhecido fone de ouvido, um vocal feminino entoava palavras em um tom doce e acalentador. Deslizando suavemente pelos alto-falantes, a melodia percorre todo seu corpo e o leva de volta ao passado.

“This is my home, The place where I’m lonely, Ghost is not real…”.

Sete minutos depois, chega ao local onde passará as próximas oito horas mais longas do seu dia. É preciso utilizar todos os artifícios comportamentais durante esse período, pois a humanidade criou algumas ritualísticas intransponíveis. Segundo os nossos ancestrais, para viver em sociedade é preciso certo jogo de cintura, uma pitada de lábia, exercitar a esperteza e se algo acontecer de errado, basta fingir que você não tem culpa sobre nada, pois qualquer figura, simboliza um local para descarte de emoções. Como de praxe, voltaria a atender as demandas vazias de mais um dia sem sentido ou planejamento. Ao menos a paisagem era acolhedora. O verde que tomava conta em torno dos prédios tons de azul e cinza, refletiam diversas sensações de liberdade conforme o lento movimento dos olhos que os enxergavam.

Era o único prazer do dia, pensava.

Recorria aos goles de um café maquiado, descia pela garganta retesada pela dor da solidão. Afinal, mais um dia infeliz acontecia e nada estava previsto para abrandar os últimos acontecimentos. Contudo, numa manhã de inverno, aquela máquina de cafés diferentes, adentrava o ambiente hostil, para açucarar o dia de inúmeros títeres do capitalismo, altamente treinados para varrer qualquer ameaça de sublimação iminente. O café que até então era bebido sem açúcar, passou a acompanhar diversas especiarias, que variam do leite espumado ao chocolate suíço, caindo no gosto e agradando até paladares mais ‘sofisticados’ presentes no ambiente.

Era comum a movimentação em torno da nova máquina de café, ao passo que qualquer um que estivesse ao lado dela, lançava alguns comentários pejorativos como “Essa marca é a pior do mercado”, “A empresa não pode gastar mesmo (risos)”, “Esse café é aguado”, “Queria estar bebericando uma dolce”. O fato é que todos os circulantes depreciavam o café dali extraído, porém, sem pestanejar, no primeiro desejo, sabiam a quem recorrer. Costumava tomar três cafés no dia de trabalho mais fraco, o primeiro servia como um propulsor de prazer instantâneo, capaz de transformar os cinco minutos seguintes em um deleite esplendoroso, com notas de baunilha, chocolate e café egípcio. O segundo, normalmente, era para atrasar o horário de almoço, ele deveria servir como um complemento e auxiliar meu corpo a enganar a fome, até o horário em que todos tivessem retornado aos seus afazeres. E por fim, o terceiro café era responsável por adoçar e banir tudo de negativo que o corpo e a mente haviam recebido naqueles intermináveis dias.

Naquela quinta-feira inferior, bem cedo, decidira se policiar, afinal, com trinta e cinco anos de vida, é preciso cuidar completamente todas as substâncias que ingerimos, a fim de minimizar as intempestividades cotidianas e possíveis idas e vindas ao serviço de saúde mais próximo.

Assim, pensa que não há problema em bebericar apenas um pequenino copinho de café com sabor doce de leite, não adoça, apenas visualiza a máquina fazer o seu trabalho e acompanha avidamente cada gota de café caindo no recipiente de papel reciclado, com inscrições tipográficas e slogan convidativo para manter certa intimidade com o consumidor. O momento era tão corriqueiro que ele jamais pensaria que aquele seria o seu último café, o último gole, a última vez que queimara a ponta da língua, o último cruzar de olhos na beirada da máquina de café, o último prazer ao sorver aquele líquido extremamente industrializado que representava a porcaria que estava a sua vida, a última passada pelas mesas alheias e nada discretas, o deleite em sentar na cadeira com o café entre as mãos trêmulas, os fones de ouvido tocando qualquer melodia depressiva e por fim, pensar nos pequenos prazeres que a vida adulta nos obriga a gostar.

Nada parecia novo naquela tela, o computador já tinha rodado algumas vezes o mesmo comando e, com isso, tornava-se o único com propriedade real para julgar o comportamento do nosso humano com defeito de fábrica. Pensa na demanda que criou para suprir a falta de atividades nas oito intermináveis horas que precisava cumprir no regime de trabalho. Sua vida se resume a criar demandas? Entre resoluções e incontáveis protocolos, escrevia mais uma vez alguma resposta genérica que serviria para acolher a curiosidade de algum entediado imerso no torpor de problemas que não são seus, mas é preciso agarrá-los para manter acessa a chama do capitalismo corporativo. Busca se concentrar, porém, segue triste, diluindo a vida numa série de trocas pífias, num grande enema ao contrário, onde todos os piores pesadelos são tatuados permanentemente na carne estúpida e machucada.

Um colega sorri, outro pisca um olhar tímido, alguém sugere um café, risadas matinais sobre assuntos triviais demais para merecer um aprofundamento, dicas de beleza e moda para os corpos mais jovens da organização, notícias e atualidades, surge uma demanda, olha o programa de mensagens instantâneas, surge na tela do computador um GIF pixelado sobre algum personagem que virou meme, vou pedir que você entre, é uma reunião importante, um colega com dúvida, diversas idas ao banheiro, um corredor vazio, precisa tomar 2,5 litros de água, volta ao banheiro, pensa em muitas coisas, abre um site qualquer, ela não olha em meus olhos, rola um aplicativo de compras em busca de algo que o preencha, cozinhas cheias, almoços vazios, abraços sem interação, fofocas edificantes, conluios, delírios, vontade de ir para casa, ar congelante, liberado home office, pessoas que fingem querer a sua presença, perguntas destituídas, laços hipotéticos, conexões beirando o favoritismo, relógio digital, faltam quinze minutos, tchau pessoal, até amanhã, se cuidem!

O café acaba. Resta apenas a borra em pó ultrafino que não serve para nada.

A vida acaba. Resta apenas a borra em pó ultrafino que não serve para nada.

O último café de agosto, pode ser o pó ultrafino que você deixa escapar entre suas mãos.

Qualquer semelhança sobre o pó é coincidência.

Autor: Vinicius de Souza

Quer seguir? @vindesouza (:

_________________________________________________________________

Ps: esse texto caracteriza/encerra uma fase sombria que vivenciei. Demorei mais de seis meses para finalizá-lo, esse fato mostra o quão difícil estava a situação e o a bagunça que estava minha mente, pois a demora é mero simbolismo para traduzir a paralisação que alimentei durante um ano e cinco meses.

Caso você conheça alguém que esteja passando por um momento difícil no campo da saúde mental, mesmo que não tenha solicitado diretamente, indique o Centro de Valorização da Vida (CVV).

O serviço oferece suporte emocional e auxílio na prevenção do suicídio, disponibilizando atendimento voluntário e sem custos para indivíduos que desejam e necessitam de diálogo, de forma confidencial por meio de telefone (Disque 188), e-mail e chat, 24 horas por dia, todos os dias da semana.

https://cvv.org.br/

--

--

Vinicius de Souza

Tem dias que eu curto escrever umas paradas. Já outros que procuro ler para poder criar mais estórias. Quer seguir? @vindesouza (: