Vinicius de Souza
4 min readOct 3, 2024
𝘍𝘰𝘵𝘰: 𝘈𝘳𝘲𝘶𝘪𝘷𝘰 𝘱𝘦𝘴𝘴𝘰𝘢𝘭 (2024).

Filhos de águas turvas

A água, que circula em abundância em nosso organismo e cuida de nossa hidratação diária, também pode devastar populações e interferir em toda a logística de um determinado local. É impressionante lembrar com carinho de um elemento que nos remete à vida, quando o perigo iminente nos cerca, promovendo o pânico generalizado. O céu mostrava sinais de timidez: o sol não apareceu, o azul tornou-se uma imensidão em tons de cinza, e a cidade parecia extremamente bucólica e vazia. Era o prenúncio de uma catástrofe já anunciada nas entrelinhas.

O corpo estava com uma frequência baixa, os afazeres iniciavam-se com pesar e certa lentidão. Tentava enxergar a positividade em meio a tantos assuntos desconexos, notícias pipocando nas redes sociais e as atividades cotidianas. Um vazio tomou conta do centro da cidade, onde geralmente as pessoas se amontoam em minúsculos espaços para viver, trabalhar, sentir, pertencer e morrer.

Como de costume, os indivíduos estavam demasiadamente envolvidos em suas singularidades, enraivecidos em suas carcaças desgraçadas, gritando em suas calçadas higienicamente apagadas. Ao passar por qualquer pessoa, é possível sentir o gosto amargo de uma vida sem conexões. Nessa configuração, o hoje é apenas mais um dia banal, mais um dia três entre tantos que teremos ao longo deste ano par. Talvez o contraste numerológico desse alinhamento tenha confundido os longevos astros que regem nossas ansiosas vidas. Com isso, ao girar a grande roda dos acontecimentos, justo no dia em que o número vibracional regente é seis — que, segundo a numerologia pitagórica, representa harmonia, responsabilidade, amor e busca por equilíbrio — , instaurou-se o caos na cidade, e uma miríade de desastres fluiu livremente, sem barreira alguma.

De repente, um burburinho instaurou-se naquele recinto com decoração industrial, um pouco démodé, mas adequado entre tantos locais que frequentamos. Com uma longa inspiração a plenos pulmões, pensamos: “Porra! Mais um dia”. O tempo inicia sua contagem silenciosa no relógio mortal, passando por cada segundo com uma motivação desgastante, pois a sensação era de congelamento total das horas. Segundos se passam e a fatídica notícia ecoa livremente pelo pé direito triplo daquele espaço. Perguntas surgem aos montes, sem resposta: é possível escutar sussurros, vozes normais, gritos e até sons não verbais. Todos embalam a mesma ladainha, como se fosse a missa de sétimo dia de um grande ente querido que partiu. Ainda resta tempo? Corremos para onde? Saímos daqui? Quem passou a informação? Houve decreto de calamidade? O muro vai romper? As vias estão congestionadas? A linha férrea já foi afetada? E minha família? Acabou a água? E a região das ilhas? Todos os questionamentos reverberam num uníssono abafado e sem sentido, destacando-se apenas uma frase que ecoará eternamente em milhares de corações: “A água afogará nossos sonhos?”

Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.

Uma parte da cidade devastada e as pessoas completamente perdidas. Não há palavras que descrevam as perdas ocasionadas por poderosos litros de água, desaguando sobre nossas vidas, levando nossa perseverança e preenchendo espaços que não foram construídos para conter sua beleza molhada até o núcleo. Levaremos muito tempo para entender o que de fato ocorreu — se é que ocorreu — , pois, para muitos em estado de choque, toda essa experiência não passou de um sonho, do qual ninguém conseguiu acordar.

Os olhares da cidade mudaram drasticamente. Onde percebíamos fagulhas de vida, agora enxergamos apenas o grito de sobrevivência, já desgastado de tanto pedir socorro. Nos cantos onde vidas jovens e efusivas bradavam alegrias aos quatro ventos, percebe-se um abandono sem precedentes. Abandono este mortificado pelo silêncio amordaçado em tantos locais que antes serviam de modelo para nossas façanhas. As calçadas, que outrora conduziam as pessoas com segurança, agora carregam tralhas, entulhos, madeirames e outros resíduos, oriundos de limpezas apressadas, sem nenhuma certeza na tão falada retomada, que seria mais forte do que nunca. O cheiro que impregnou a cidade contrasta com as diversas camadas sociais: para aqueles que não foram afetados, o aroma de patchouli ou âmbar podia ser adquirido sem prejuízo financeiro ou dificuldade; já para os mais atingidos, a inexistência de elementos básicos, o encarecimento de itens essenciais e a falta de recursos naturais tornaram-se a única certeza de um apocalipse sem precedentes.

Casas, árvores, prédios, automóveis, construções vazias, empresas, espaços de convivência, parques, ciclovias, aeroportos, vias de fluxo, rodoviárias, estações, monumentos, pessoas, animais — tudo foi tomado pela força da água turva, carregando uma porcentagem alta de dejetos, bactérias, fungos e outras variações de destruição em estado líquido. Na enchente de 1941, foram nossos avós e pais que lutaram contra as mesmas águas. Hoje, somos nós, os filhos que escutaram histórias e contos sobre águas avassaladoras, torcendo, com muitos questionamentos e inseguranças, para que nossos futuros filhos não percam, diante da força das águas, a vontade de viver e de pertencer à cidade que chora lágrimas turvas, enquanto enxugamos nossos próprios erros.

Autor: Vinicius de Souza

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Toda solidariedade aos irmãos do Rio Grande do Sul que ainda vivem um grande embate na retomada de seus sonhos.

https://sosenchentes.rs.gov.br/

Vinicius de Souza

Tem dias que eu curto escrever umas paradas. Já outros que procuro ler para poder criar mais estórias. Quer seguir? @vindesouza (: